Os frutos podres da preguiça da humanidade
- giovannadelcarlo
- 3 de mar. de 2022
- 6 min de leitura
Atualizado: 28 de ago. de 2024
Como é curioso notar que em uma época não tão distante, os trabalhos do colégio envolviam maquetes e cartazes. Esses últimos construídos com recortes de jornais ou revistas. Quando não se achava a informação, quem tinha condições financeiras podia recorrer às chamadas Lan Houses (ainda existem?) e imprimir o conteúdo no mais alto estilo "Comic Sans" (quando ela se tornou tão odiada?).
Lembro, como se fosse hoje, as reclamações da internet discada. A lentidão da conexão reinava, mas não só. Vai me dizer que não surgia um desentendimento entre você e sua mãe em pleno domingão? Podia até não ser com sua mãe, mas alguém saia perdendo na disputa telefone x MSN. Sim, caso você não saiba, não dava para usar o fixo e navegar na Internet ao mesmo tempo, e aos domingos tanto um quanto outro eram bem mais baratos. A gente sonhava como criança com a banda larga, em um período que o acesso a ela era bem mais restrito.
Até bem pouco tempo, fazer pesquisas demandava horas em uma biblioteca. Consultar a ortografia ou o significado de uma palavra exigia o mínimo de habilidade no manuseio de um dicionário. E os chamados e-books estavam longe de se tornar realidade.
Com o advento do Google, essas práticas ficaram para trás e até cálculos matemáticos o buscador faz (juro que a rima não foi proposital). Quando ele começou a se tornar a ferramenta que é hoje, associado a um processo de democratização da conexão rápida, a expectativa era de que a vida seria simplificada, teríamos mais tempo para fazer novas descobertas, fossem elas quais fossem, tudo pela velocidade que era possível consultar dados na Internet. Ironicamente, o resultado foi o inverso. Nos tornamos e temos nos tornado cada vez mais preguiçosos.
O pior, temos corrido tanto e poupado tantas horas e tantos minutos, para no "tempo livre" ficar rolando a tela do celular no Instagram ou no Tik Tok (nada contra os "roladores de tela", ok? Até faço!). A gente anda tanto querendo evitar a fadiga que se o título de uma reportagem for grande demais nem continuamos a leitura; se o filme tem mais de um hora e meia já achamos entediante, e se aquele tutorial do Youtube é muito detalhista procuramos outro antes dos primeiros sessenta segundos. Até o WhatsApp agora tem o acelerador de áudios, já que a maioria dos seus usuários não quer mais perder tempo ouvindo os recadinhos em voz, especialmente se eles tiverem mais de um minuto de duração.
Eu entendo que no início de toda grande novidade é difícil conter a empolgação. Quem nunca se sentiu culto por buscar informações no Wikipédia? Até descobrir que basicamente qualquer pessoa pode inserir informações ali, ou até mesmo alterá-las. Uma lástima. O mais intrigante é que mesmo com essa decepção quanto ao site, a gente não aprendeu que nem tudo que tem na rede é verídico. Às vezes, em poucos minutos no Facebook me sinto assistindo ao extinto "Jornal Sensacionalista" do Multishow.
Mas, a realidade é que, apesar de a cada dia nos surpreendemos mais com os acontecimentos da vida, do mundo, da natureza, do nosso círculo familiar e social, não paramos para questionar as informações que chegam ao nosso poder. Aceitamos-as como "verdades absolutas", as defendemos como se defendêssemos a vida de uma pessoa muito querida e as compartilhamos como se fossem experiências próprias. A gente não quer pesquisar, experimentar, pensar e raciocinar. É mais fácil e mais cômodo receber tudo pronto e mastigado e sair replicando para todos os contatos, sem sequer saber exatamente sobre o que tratam.
E nessa onda de preguiça e comodismo caímos em um mal tão contagiante quanto esses: a ignorância. Porque mesmo sem checarmos qualquer fonte, todos parecemos muito convictos. Mais que isso. O ego fala mais alto. Reconhecer uma falha não é uma opção. Nos sentimos os detentores da verdade única e absoluta. E como dizem por aí: "A nossa verdade". Essa tendência não é de se espantar em mundo tão imediatista como o que vivemos. Nos fim das contas, o importante é ter a notícia, em vez de certificar-se a respeito dela, mesmo com os meios disponíveis para tal.
Isso tem se agravado tanto que, além de não termos paciência para longas conversas, postagens ou programas, não temos principalmente tolerância para ter contato com qualquer conteúdo contrário ao que pensamos. Afinal, se não faz parte do meu nicho, como diria Ariana Grande: "Thank you, next!".
Nos convencemos tanto daquilo que lemos e queremos ler, (quando nos é conveniente, claro) que tentamos convencer as pessoas ao nosso redor a fazerem o mesmo. Queremos impor uma homogeneidade de pensamento. Dói demais abrir a mente e cogitar a possibilidade das coisas que pensamos não serem exatamente o que pensamos. Dói descobrir que nossas certezas estão cheias de incertezas. E se dói, eu não quero, mesmo que possa trazer evolução. Aliás, a galera da "Síndrome de Gabriela" está cada vez maior.
Em uma árdua tentativa de não enxergar a realidade ou desencorajados de encará-la, preferimos fingir que ela não existe. Romantizamos situações verdadeiramente alarmantes e ignoramos os efeitos colaterais daquilo que nos beneficia. Perdemos a capacidade de estabelecer um diálogo sério e objetivo. Em 2022, se Nelson Rodrigues viesse com esse papo de "a vida como ela é" certamente seria cancelado na Internet.
Para ficar ainda pior, o ser humano no alto do seu pedestal de soberba, superioridade e prepotência, transforma em inimigos aqueles que ousam pensar diferente dele. Não à toa, já disse Allan Kardec: “…O mundo está cheio dessas pessoas (...) que são brandas contanto que nada as machuque, mas que mordem à menor contrariedade". Fico imaginando o que ele diria se vivesse neste século.
Parando para pensar a fundo sobre isso, e diante dessa frase, vejo que esse tipo de comportamento humano não é tão novidade assim (ele só ganhou mais espaço), tanto que tendemos a agir dessa forma desde pequenos por influências externas. Quando criança, amava a cor vermelha, porém, minha melhor amiga, a Maria Luiza, gostava do amarelo e, talvez, ela nunca tenha desconfiado disso, mas eu ficava chateada por Malu não ter o vermelho como cor preferida.
Pelas minhas falas quanto ao assunto, minha mãe rapidamente percebeu essa indignação, e sempre retrucava: "Imagina se todo mundo gostasse do amarelo, menina?" Mamãe estava certa, imagina o quão caótico seria se não tivéssemos gostos, opiniões e posicionamentos diferentes? A partir dali, percebi que a Malu não tinha que gostar do vermelho para ser minha amiga. Ou que nossa amizade tinha que acabar por causa disso. Até passei a escolher os presentes dela da cor amarela. Foi aí que entendi o que é tolerar.
Apesar de o lema moderno ser "aceitar as diferenças", não estamos preparados para acreditar que elas existem, que são reais e que sim, podem ser muito válidas. Um debate na atualidade, rapidamente vira um embate. O objetivo não é a troca de ideias e a reflexão, mas praticamente obrigar o outro a pensar como eu. E se, mesmo depois dessa "conversa", ele não concordar com o que penso, ele deve e merece ser exterminado do Universo. Voltamos à Idade Média e à prática das fogueiras?
Pesquise, conheça as mais diversas culturas, nichos, áreas, ou as tais bolhas como têm se falado muito ultimamente. Pondere, analise, dialogue consigo, veja o quanto aquilo faz sentido para você e se for para mudar de opinião, mude, sem vergonha disso. Ao menos cogite que você pode estar errado. Temos o direito de evoluir, amadurecer, se desenvolver e isso envolve mudanças naquilo que somos e pensamos.
Seu mundo não vai acabar e o chão não vai abrir sob os seus pés se você reconhecer que as pessoas ao seu redor não são e nem devem ser iguais a você. E, principalmente, que isso não as torna suas inimigas. Você não precisa abrir mão do que pensa para dialogar com quem pensa diferente e vice-versa. Você não precisa saber qual o posicionamento de alguém para acolhê-lo ou ajudá-lo. Você não tem que segregar uma pessoa porque ela tem uma opinião, pensamento ou ideologia diferente da sua. Não queira, espere e muito menos exija que as pessoas vejam o mundo como você vê.
Acredito firmemente que o que move e desenvolve o ser humano e a sociedade é sua diversidade e quanto mais diversidade ela pode gerar. Pena que a nossa preguiça e teimosia tem nos levado a um processo de ignorância generalizada sem precedentes. E a cadeia é bastante assustadora: a inércia quanto ao conhecimento aflora seu orgulho que pode, não raro, te transformar em um ignorante. O próximo passo é a intolerância. E por mais confuso que possa parecer, não tolere o intolerante e o intolerável. Caso contrário, quando nos dermos conta, será tarde demais para reverter. Seremos vítimas mas também nossos próprios algozes. Será o fim da humanidade pela própria humanidade.
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