A toxicidade de algumas relações de trabalho
- giovannadelcarlo
- 23 de nov. de 2021
- 9 min de leitura
Atualizado: 28 de ago. de 2024
Convenhamos, quem nunca trabalhou em um lugar totalmente desagradável e desconfortável? No qual a relação com os colegas de trabalho ou com o próprio chefe eram pesadas e difíceis? Acho que a maioria de nós. Isso ganha contornos ainda mais preocupantes quando algumas atitudes resvalam no assédio moral. Mas, em qualquer relação, seja profissional ou não, a indiferença é capaz de destruir qualquer autoestima e dificilmente um indivíduo se sentirá bem emocionalmente e psicologicamente.
Quando nos formamos e nos lançamos ao mercado de trabalho temos uma visão muito romantizada de nossas profissões. A gente quer mudar o mundo, fazer justiça, acabar com a miséria, reduzir as desigualdades, mas, na prática, isso parece muito distante do possível. Só para se inserir nesse mercado profissional cada vez mais competitivo já é um sufoco. Não, realmente as coisas não vêm de bandeja, algum esforço será necessário para que alcancemos nossos objetivos, isso é fato. Mas não é essa a referência aqui.
Tirando a crise gerada pela pandemia de Covid-19, que impactou diretamente nas relações de trabalho, o alcance de uma boa colocação profissional hoje exige não apenas um grande esforço como também uma resiliência considerável. É só notar alguns anúncios de processos seletivos. A vaga é para estágio ou para Júnior/Trainee e os requisitos exigidos são para que você seja o próximo Albert Einstein. Essas oportunidades não são para os iniciantes em uma carreira? Deveriam ser, e as empresas deveriam se mostrar abertas a isso. Para que novos profissionais possam adentrar ao mercado, se especializar e trabalhar tão bem quanto seus precursores, eles precisam aprender, treinar, vivenciar a prática da atividade e claro, terem a oportunidade para que isso aconteça, inclusive do ponto de vista financeiro.
Isso sem mencionar o famoso Q.I.: "Quem Indica". Todos já ouvimos a história do Fulano que conhecia Ciclano e contratou Beltrano pela famosa camaradagem, não por competência ou habilidade. É o moderno e gourmetizado nepotismo.
Não raro, muitos profissionais se veem insatisfeitos nas suas carreiras, seja porque não é como pensavam, seja porque, se formam em uma determinada profissão porque os pais sugeriram (ou impuseram); o tio tinha um negócio no ramo, ou um amigo da família prometeu uma vaga na área.
Eis que uma entrevista surge. Você se arruma todo confiante e pomposo, e principalmente feliz por terem notado seu potencial, ainda que você não seja contratado; embora seja este o objetivo. E então a entrevista é um fiasco. Não porque você não estava preparado, ou sua tensão atrapalhou todo seu foco, mas porque o recrutador estava extremamente perdido. Além de fazer perguntas simples, para as quais se obteria a resposta com uma rápida olhada no seu CV, às vezes surge um: "Ah, não vi isso no seu currículo", para uma informação que você só não colocou em um letreiro luminoso por impossibilidade técnica. Dá vontade de responder: "Deve ser porque você não leu".
No final daquele agradabilíssimo bate-papo (porque é o que se torna nesses casos), o possível contratante te comunica da impossibilidade de te pagar um fixo, apenas uma comissão pelos possíveis clientes que você atrair ao negócio. Embora você tenha que permanecer em horário comercial na empresa dele, fazendo serviços da empresa dele, que já existiam antes de você lá estar.
E ainda que você mencione a sua dificuldade em trabalhar nesse modelo (se é que assim pode ser chamado), afinal você precisa sobreviver, como todo homem médio, e que dificilmente a comissão será suficiente para isso, ele resolve fazer um brilhante questionário de quanto você gasta por mês com comida, aluguel, luz, água e afins "para ver se consegue inserir esse valor no orçamento da empresa". Como se todo o investimento técnico e intelectual que você fez não tivesse valido de nada e você só trabalhe, ou busque um trabalho, para pagar contas (não que esse não seja o motivo principal ou pelo menos o mais relevante).
Como diria o saudoso Saraiva: "Intolerância zero". Mas, você respira e dá um sorriso amarelo, porque você não está só procurando um trabalho, como PRECISA de um, afinal a pressão da sua família, da sociedade e de seu círculo de amigos só não é maior por falta de espaço. Sem mencionar a chegada dos boletos, claro. Além da sua consciência que te lembra a cada instante do dia, do momento que você abre os olhos até o momento que os fecha, o quanto você está à toa e não fazendo o suficiente para buscar um emprego.
Até que em um belo dia, por um raio de misericórdia, surge uma oportunidade. E não é que te ligam, te chamam para uma entrevista e você é "contratado"? (sim, entre aspas porque a 'Pejotização' é o carro chefe do mundo profissional contemporâneo; mas pasme, praticamente chancelada pela CLT, recentemente alterada).
E lá se vem seu primeiro dia de trabalho. Você está animado pois finalmente "chegou lá", o que quer que isso signifique. Mas, em um piscar de olhos sua animação vai embora. Quando você chega no seu mais novo recinto profissional, seus futuros colegas de trabalho são a cara da exaustão (para não dizer da morte). Um clima tenso e incômodo paira no ar. As pessoas se entreolham estranhamente, parecendo pedir socorro com os olhos e todos falam baixo, mas tão baixo que parecem murmurar.
De repente, surge seu mais novo chefe, que te cumprimenta, te coloca em um computador nitidamente recauchutado, te dá a senha de acesso ao sistema e após explicar como ele funciona em menos de 5 minutos em sucintas frases, termina com um: "Então é isso, vou te passar umas tarefas para você 'pegar o jeito' e a gente já se fala". E some nas profundezas do...da sala dele.
Nada de mal até aí né? Até você notar que, o computador seria mais rápido se funcionasse à manivela; as 'tarefas' são pepinos mais antigos que Maomé; provavelmente te empurraram coisas que ninguém conseguiu solucionar, na expectativa de que você as resolva magicamente no primeiro dia de trabalho (como costumeiramente é feito com os recém-chegados, como uma herança). Isso quando não são atividades começadas, não terminadas; retomadas, mas não concluídas, com diversos pormenores que ninguém se mostra disposto a elucidar, para que você possa então saber onde está pisando e iniciar seu trabalho.
E lá começa o seu primeiro (ou seria segundo?) desconforto. Uma vontade louca de fazer xixi ou fazer uma boquinha, mas você nem sabe se tem espaço para essas coisas, é uma sala pequena, algumas portas e aparentemente ninguém se preocupou com o fato de que você é um ser humano, como todos os outros, e, por óbvio, tem necessidades fisiológicas. Apesar do clima de 'perguntas = incômodo', você se arrisca e obtém a resposta seguida de uma bufada.
Dá para imaginar que esse cenário não melhora né? São tarefas repassadas a você que não foram previamente combinadas; são viagens e mais viagens a trabalho que também não foram antecipadamente comunicadas e acordadas; e por mais que você esteja atolado em atividades e mais atividades, o seu trabalho tem que ser impecável, e uma margem errada no cabeçalho pode ser motivo para uma firme chamada de atenção, como se os resultados dependessem daquela margem. E os elogios pelos acertos e conquistas? Ah, não são necessários.
Já falamos que não melhora. Chega perto do Natal e não há sequer um: "Boas Festas". Quando você fala a respeito do recesso de final de ano, vem a pergunta: "Mas você terminou todas as suas atividades?", sendo que isso é completamente monitorável e constatável pelo sistema.
Um novo ano se inicia e aquele fio de esperança te conduz a acreditar que o clima vai melhorar. Rapidamente ele morre quando não há sequer uma fala de incentivo para a nova caminhada anual, apenas uma mensagem de WhatsApp te cobrando 10 tarefas em 30 minutos, nas primeiras horas do primeiro dia útil do ano (pelo menos esperou o dia útil, né? Você pensa.). Isso quando não entra um novo colega de trabalho que mais falta do que trabalha e que incrivelmente ganha mais que você porque tem uma Pós-Graduação em Astrologia (nada pessoal contra os pós-graduados em Astrologia).
Apesar dos alertas da falta de colaboração deste novo membro, um longo e sofrido tempo se passa, permeado por repasses de tarefas a você, inicialmente delegadas a ele, até que o dito cujo é dispensado. E ao contrário do que se possa imaginar, as coisas ficam piores, pois além das suas atividades rotineiras, é incumbido a você tampar todos os buracos deixados por seu antigo coleguinha. Em tempo recorde, claro. Nem que isso signifique trabalhar doze horas por dia, ou mais, abdicar de sua saúde mental e sua vida social sem qualquer contrapartida. Na verdade, te é ofertado menos que o mínimo.
Não esqueçamos ainda daqueles indivíduos que adoram uma intriga, e só estão esperando a oportunidade certa para fazer fofoca, criar situações de discórdia ou se aproveitar das informações truncadas para puxar o seu tapete ou de outrem. Tudo isso tirando o corpo fora, claro.
Na tentativa de implorar por reconhecimento, você questiona seu chefe sobre a possibilidade de aumentar sua remuneração, embasando seu apelo em todas esses eventos surpresas, a sobrecarga habitual de trabalho e as dificuldades enfrentadas pela falta de diretrizes objetivas. Mas o que você recebe é a falha tentativa dele de esconder um sorriso irônico e debochado. Porque se pudesse gargalhar na sua cara, ele certamente gargalharia.
Até que finalmente você se dá conta da cilada que entrou. E toda aquela cobrança volta, você está em início de carreira, não pode fraquejar, a vida não é fácil, tem que perseverar e como dizia sua mãe: "Quer moleza senta no pudim".
Pode só ser uma experiência negativa, pode ser que você seja apaixonado por aquela carreira, mas aquele trabalho não é para você. Pode ser também que você descubra que aquela profissão não tem nada a ver contigo e você precisava de um sinal divino mais incisivo para se dar conta disso.
Mas ao contrário do que possa parecer, ou do que se pensa, isso não acontece só com os recém-formados. Não é difícil encontrar pessoas insatisfeitas com seus cargos. E são pessoas com anos de carreira. 10, 15, 30 ou mais. E que, apesar dos anos de experiência, da habilidade prática e de todo o conhecimento adquirido ao longo da vida, não são prestigiados como imaginavam que seriam um dia quando eram recém-formados. Pelo contrário, passam pelos mesmos percalços. O ponto positivo é que muitas destas pessoas transformam a estafa e o esgotamento em combustíveis para a mudança. Uma verdadeira mudança de vida.
A hierarquia é importante sim, e não pense que por o seu chefe ser compreensível e gentil, ele deve, obrigatoriamente, ser seu amigo. Um grande mestre, talvez. Porém, o mínimo de respeito ao outro é imprescindível em qualquer relação. Principalmente na relação de trabalho. Não importa sua posição, seja ela superior ou inferior, simples ou complexa, técnica ou não técnica, reconhecer aquele que se contrata, como ser humano é obrigação de qualquer empresa por menor que ela seja.
Os contratantes precisam entender que tratar seus funcionários (ou colaboradores) com a hostilidade da indiferença não os vai coagir a dizerem amém a tudo, não por muito tempo. Pelo contrário, os farão perceber que a vida deles não tem preço, tampouco valem os dois salários mínimos (ou menos) que muitos recebem.
Tratar bem uma pessoa não é um favor. E ao contrário do que muitos chefes pensam por aí, a relação laboral é uma via de mão dupla sim. Você precisa do emprego pela remuneração? Claro. Mas a empresa precisa do seu trabalho. Embora ela possa colocar outra pessoa em seu lugar com os mesmos conhecimentos que os seus, talvez os seus métodos de produção e desempenho sejam primordiais para o funcionamento daquele todo. Além do mais, treinar outra pessoa em um curto espaço de tempo, pode ser bastante dispendioso. Isso sem mencionar como um ambiente acolhedor e amistoso podem fortalecer relações, deixar a rotina mais leve, transmitir confiança e tornar os desafios menos assustadores.
Para se ter um funcionário honesto e compromissado você precisa ser um chefe honesto e compromissado. Antes de contratar ou ao divulgar uma vaga, esclareça as regras da empresa; informe sobre a ausência de autonomia, ou a presença dela e seu grau; mencione sobe as eventuais viagens a trabalho, para qual distância costuma ser, quem arcará com as despesas; deixe nítido o que você espera daquela pessoa como profissional. E, acima de tudo, informe a remuneração oferecida para aquele cargo. Isso vai poupar tempo para o candidato se ela não atender às suas necessidades e para a própria empresa, que poderá dedicar o período daquela entrevista a outras, com postulantes que realmente desejem e se adequem àqueles termos.
Além do mais, um ato de incentivo por menor que seja, como parabenizar em uma data comemorativa, ou perguntar se está tudo bem após uma ausência por motivos médicos, é uma forma de gratidão e valoração por aquele indivíduo estar ali. Por mais que o funcionário não esteja satisfeito com seu salário ou suas atividades, ele vai notar a sua empatia, e a sua forma de dizer que o reconhece como o ser humano que é. Além de se sentir motivado a fazer o mesmo, seja no ambiente profissional ou fora dele, se sentirá grato por estar em uma instituição que o valoriza. Valoriza seu conhecimento, seu trabalho e a sua pessoa. Acima disso, sentirá orgulho por, literalmente, vestir a camisa daquela empresa.
Comments