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A Cultura da Terceirização dos Próprios Problemas

  • giovannadelcarlo
  • 4 de nov. de 2021
  • 6 min de leitura

Atualizado: 3 de abr. de 2022

É mais fácil jogar a culpa no próximo, do que assumir a própria parcela de culpa. Nós, frequentemente, fazemos isso (ou pelo menos já fizemos), especialmente quando crianças, embora alguns façam depois de grandinhos também. Só que ainda mais fácil que isso, principalmente quando se está inserido em um conflito, é esperar que uma pessoa, completamente alheia à situação, surja com uma solução brilhante para o impasse. Como brilhante lê-se: "o que EU acho melhor". E apesar da velha máxima, "cada um com seus problemas", a prática é bem diferente.

Não que não possamos ter a ajuda de outro alguém para solucionar uma questão embaraçosa do nosso dia a dia, afinal, não somos autossuficientes, uma ajuda sincera é válida e pode ser de grande valia. Acontece que existe um abismo de diferença entre pedir um conselho (ou apenas um ombro amigo), e jogar, no colo de outra pessoa, a árdua tarefa de solucionar um desafio seu, unicamente seu.

Isso não é uma sugestão para se evitar conflitos a todo custo, mesmo porque, eles vão existir, caso a gente queira, ou não. Somos seres que temos muito em comum e, ao mesmo tempo, muito de diferente. Cada um com um entendimento, um estilo de vida, uma opinião, que, em algum momento, podem se contrastar, podem se opor. Isso, por si só, já é um conflito. Só que, ao contrário do que usualmente se pensa, eles podem ser muito positivos para deixar de lado uma crença limitante, para a evolução da sociedade, ou, para a mudança do status quo, por exemplo. O que nem de longe é sinônimo de desrespeito.

Contudo, tem-se notado um significativo aumento da intolerância dos indivíduos uns com os outros, é só assistir aos jornais ou entrar em uma rede social. Não obstante, observa-se um total de zero disponibilidade para se solucionar uma desavença, a não ser por intermédio da decisão de um terceiro. Não que um terceiro não seja essencial, e até indispensável, em alguns casos.

Isso é fácil de perceber no dia a dia. Sejamos honestos, muitas vezes em coisas pequenas, para não dizer mínimas, lá estamos nós buscando que o veredito venha de outrem. Em uma simples confraternização de família, se sua tia briga com sua mãe, elas vão procurar o apoio e o xeque-mate por meio de outro parente ali presente, geralmente com um: "E eu num tô certa?". Talvez, situações assim sejam só hilárias, mas acabam por contaminar e influenciar outras mais graves.

Ainda nesse cenário, uma tendência intrigante tem acontecido na modernidade. A internet tem suas maledicências? Tem. Só não se pode negar que ela é um importante meio de comunicação e, principalmente, de informação, apesar de muitas pessoas ainda não terem acesso a ela. Nesse movimento, o que se espera? Que por estarem melhores informados e integrados a diversos assuntos, os indivíduos sejam capazes de dialogar e ceder mais. Errado! A clássica hoje é: "Eu vou te processar!".

E lá vamos nós, não satisfeitos em envolver colegas de trabalho em problemas familiares, ou parentes em problemas de amigos, a gente apela também para o Estado. Não sejamos hipócritas, há muitas situações em que as demandas jurídicas, as quais cada vez mais se recorre, são necessárias, mas, em grande parte delas, uma boa conversa resolveria a questão. A sobrecarga do Judiciário que o diga.

Será que nesses casos, as partes querem realmente resolver o conflito? Ou apenas alimentá-lo, se enfrentando como em um ringue? Ou será que apenas desejam escancarar sua posição de dominância e sua razão, imaginadamente, suprema, com o "ganho" da causa? Cada processo judicial, hoje, envolve uma demanda tão importante e tão relevante quanto a outra, cada um com suas peculiaridades e complexidades. Assim, vamos levantar alguns pontos.

Os seres humanos são movidos pelas emoções e elas influenciam em todas as áreas da vida de um indivíduo, por mais que ele tente separá-las e se esforce para tal. Em um processo na Justiça não é diferente. As partes, cada uma dentro do seu posicionamento, ajuízam (ou respondem) uma ação ávidas pelo ganho; mais que isso, ávidas por uma decisão que ratifiquem suas razões.

Ocorre que, frequentemente, se frustram, seja porque a determinação não lhes favorece, seja porque não veem reconhecido um direito que achavam que tinham, seja porque, o que geralmente ocorre, a sentença desagrada tanto aos demandantes, quanto aos demandados. O descontentamento (para não dizer raiva) agora, não é só com relação a situação em si, que gerou o ajuizamento da ação, o descontentamento é com o julgador que não entendeu como se esperava que entendesse; com o próprio Judiciário, por as partes acharem que ao invés de ajudá-las, as atrapalhou; pode ser até com os demais envolvidos no processo, como o próprio advogado, ou o patrono do "adversário", que fizeram apenas seus trabalhos dentro dos mecanismos que estavam a seus respectivos alcances.

Às vezes, essa revolta generalizada não foi porque se perdeu tudo, ou se ganhou nada, foi porque o resultado final não foi EXATAMENTE como cada indivíduo, dentro de suas motivações e posicionamentos, desejava; mas não pense que tudo termina aqui. A lei permite que se recorra da decisão, o que de maneira alguma é ruim. Afinal, os julgadores são seres humanos, assim como todos nós, passíveis de falhas e equívocos. Agarrando-se a essa cartada final, (que nem sempre é final), a parte coloca toda sua expectativa de que a próxima decisão lhe será totalmente favorável. Pode acontecer sim, mas não é o que normalmente acontece. E voltamos a todo ciclo de insatisfação. Só que ainda maior.

No final, é bem possível que o indivíduo só esteja se sabotando e insistindo em um conflito totalmente contaminado pelo simples desejo de nele permanecer, para que, o lado oposto possa sentir, também, nem que seja um pouco, todo aquele desgaste (como se ele já não estivesse tão desgastado quanto). Sem mencionar que todo esse processo, literalmente falando, tem, por hábito, durar anos e anos. A morosidade do Judiciário, muitas vezes motivo de reclamação das próprias partes, está cada vez maior por situações como essas.

Isso se torna um ciclo vicioso e perigoso. Os operadores do direito são ensinados, desde os primeiros períodos da graduação, como funciona uma contenda na Justiça, como conduzi-la e como tudo gira em torno daquele conflito, como se o Direito fosse apenas isso. Não que seja errado, até porque essas são as atribuições de um Bacharel em Direito e futuro advogado, ou juiz, ou promotor. Não é como se as instituições de ensino estivessem equivocadas, já que estão apenas acompanhando essa tendência moderna do litígio. Por outro lado, isso acaba por reforçar esse aspecto contencioso em que a sociedade se encontra. Já há vários alertas no meio jurídico sobre esse risco. Não à toa, o Código de Processo Civil de 2015 prestigia os meios alternativos e adequados de solução de conflitos. Já não é hora de enfatizar, ainda mais, esse aspecto colaborativo, desde a formação dos indivíduos, na escola ou na universidade? Até mesmo nos mais diversos cursos de graduação?

Apesar de a Conciliação e a Mediação também envolverem a presença de um terceiro; diferente de um Juiz que, na maioria das vezes, impõe uma decisão, o conciliador e o mediador buscam questões mais profundas, facilitando a comunicação, para que as próprias partes consigam concluir o que é igualmente melhor para elas.

Precisamos escutar mais uns aos outros e respeitar o momento que cada pessoa tem para se manifestar. Praticar, efetivamente, uma escuta ativa que vai além do corriqueiro: "Pode falar, tô escutando.". Envolve empatia, compreensão, ponderação e respeito, claro. Os diálogos francos estão cada vez mais escassos, são falas sobrepostas, gritos e acusações seguidas.

E é com essa ausência de disposição para a conversa que perdemos as rédeas dos nossos próprios problemas e as empurramos para um terceiro; esperando que, mesmo de fora da situação e obrigatoriamente imparcial, eles nos traga a melhor decisão, que não raramente, ao nosso ver, a melhor decisão é a que única e exclusivamente nos beneficia.

O objetivo aqui não é desmotivar o ajuizamento de ações judiciais, mesmo porque, a tutela jurisdicional é direito constitucionalmente garantido. Pelo contrário, o intuito é incentivar o uso, ou pelo menos a tentativa, de outras vias resolutivas, desde que, obviamente, lícitas e legítimas, antes que o Judiciário seja efetivamente e conscientemente acionado. O que, certamente, tornará o próprio acesso à Justiça mais célere. Afinal, estamos ajuizando ações ou apenas terceirizando a solução de nossos problemas?


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