A Marginalização Registral dos Não Binários
- giovannadelcarlo
- 30 de nov. de 2021
- 6 min de leitura
Atualizado: 28 de ago. de 2024
O posicionamento do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4275, em 2018, e, posteriormente, o advento do Provimento 73 do Conselho Nacional de Justiça tornaram menos morosa a alteração dos assentos civis para os integrantes da comunidade LGBTQIAP+. Ou, pelo menos, parte dela. Isso porque, conforme se pode depreender da leitura de ambas as orientações, não é mais necessária a autorização judicial para a prática do ato, que, atualmente, pode ser realizado pela parte interessada diretamente nos cartórios.
Não se pode negar que é uma importante conquista, tendo em vista que além da referida determinação, a Suprema Corte decidiu também que, para a alteração desejada por esses indivíduos, não é obrigatória a apresentação de laudos médicos, tampouco a realização da cirurgia de transgenitalização – o que depois foi endossado pelo Provimento.
Essas observações foram igualmente relevantes ao passo que, este grupo, além de socorrer-se do Judiciário a fim de alterar seus assentos de nascimento mediante autorização judicial, ficava a mercê do entendimento do Juiz sorteado para o julgamento da causa. Isso ocorria pois, em que pese a ausência de norma específica sobre o tema, muitos magistrados e representantes do Ministério Público entendiam pela necessidade de realização do chamado procedimento cirúrgico de redesignação sexual. Sustentam algumas autoridades, que tal procedimento seria capaz de demonstrar de forma irretratável a vontade do postulante em realizar a referida alteração, considerando a irreversibilidade da cirurgia.
Um importante destaque realizado no voto do Ministro Marco Aurélio, na ADI supra, é quanto à correta denominação aos indivíduos que desejam exercer esta alteração registral quanto ao sexo. Em que pese se encontrarem dentro da mesma comunidade, qual seja a LGBTQIAP+, é necessário entender qual grupo cada sigla representa. As primeiras, L,G e B referem-se, respectivamente, a Lésbicas, Gays e Bissexuais. As pessoas que assim se identificam não se sentem incomodadas com o próprio corpo, mas sentem atração pelo mesmo sexo que o próprio, ou, no último caso, por ambos concomitantemente (L'ORÉAL BRAZIL, 2021).
A letra T espelha os transsexuais, os transgêneros e os travestis, os quais realmente não se identificam com o gênero que lhes é atribuído pela genitália de nascimento, sentindo-se, assim, extremamente desconfortáveis especialmente com os órgãos de seus sistemas reprodutor. Importante registrar que foram essas pessoas o centro da ADI 4275. A consoante Q são os chamados queer, que transitam entre as denominações e identificações do masculino e feminino. Os intersexos, indicados pela letra I, não se identificam com as características de homem e nem de mulher; denominação dupla tradicionalmente adotada. Enquanto isso, a sigla A faz referência aos assexuais, aqueles que não sentem atração sexual por quaisquer dos gêneros ou sexos (RIELLO, 2021). Por fim, tem-se os pansexuais destacados pelo símbolo P – recentemente acrescentado – e são os indivíduos que se atraem pela essência de uma pessoa, independentemente de como ela se identifica.
O símbolo de mais (+) representa as diversas identidades de gêneros e orientações sexuais, como o termo Drag Queen que apesar de não se encontrar explicitamente estampado na sigla, com ela guarda estreita relação, por retratar pessoas que usam roupas e maquiagens extravagantes se valendo da arte para produzir uma crítica social (RIO GRANDE DO SUL, 2021).
Assim, é válido ressaltar ainda, a diferença entre orientação sexual e identidade de gênero. Enquanto a primeira ser refere a uma questão de interesse libidinoso, a segunda, como o próprio nome sugere, se volta a uma situação de autorreconhecimento. Neste cenário, é possível concluir, como já destacado, que o entendimento do STF se volta àqueles que não se reconhecem como denominados em suas certidões de nascimento, assim chamados de transgêneros, transexuais ou travestis.
Infere-se porém, que há os transgêneros binários e os transgêneros não binários. Estes últimos são justamente aqueles que embora não se identifiquem com seu sexo de nascimento, também não se identificam com o binarismo tradicional (feminino e masculino) e por isso se denominam não binaries. Lamentavelmente, porém, foram excluídos da ADI 4275 e do Provimento 73.
Novamente, há que se destacar a ausência de previsão legal explícita e específica para a realização de mudanças em certidões de nascimento exclusivamente no caso dos transgêneros, razão que motivou, também, o posicionamento da maior instância do Poder Judiciário sobre a temática. Contudo, a norma que regulamenta estes procedimentos registrais e notariais, qual seja a Lei 6.015/73, intitulada de Lei de Registros Públicos, especificamente em seus artigos 56 e 57 aborda a possibilidade de modificação de um registro civil em sentido amplo. Pelo primeiro, a lei possibilita que um indivíduo altere seu nome no ano seguinte ao da conclusão da maioridade. Enquanto isso, o segundo dispositivo leciona que, após esse período, a alteração do prenome deverá ser motivada, e será precedida de uma espécie de autorização judicial dentro de uma Ação de Retificação de Registro Civil que contará com a participação de um representante do órgão Ministerial.
Além disso, o artigo 58 da mesma lei diz que embora o nome seja definitivo ele poderá ser substituído por apelidos, desde que públicos e notórios. Autorização inclusive que, registre-se apenas por amor ao debate, fez a apresentadora Xuxa e o jogador Pelé incluírem esses vocativos em seus registros civis.
No dia 26 de novembro de 2021, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em parceria com a Defensoria Pública do estado, promoveu a alteração de nome e sexo de mais de 90 pessoas. Sendo que 47 delas poderão ver, finalmente, em suas certidões de nascimento, no campo "sexo", o termo não binárie, uma vez que ajuizaram uma ação perante o Poder Judiciário com esse intuito. Assim, embora tenham obtido o desejado de forma relativamente mais ágil que o tradicional, isso não ocorreu pela possibilidade de acionarem as serventias extrajudiciais (inovação trazida pelo CNJ autorizado pelo STF), especificamente os Registros Civis das Pessoas Naturais, mas sim pelo empenho e dedicação da NUDIVERSIS - Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual da Defensoria Pública Fluminense, quanto à causa não binária.
A importância do registro civil é tamanha, ao ponto de ser eleito como tema do Exame Nacional do Ensino Médio em 2021. Esse assentamento permite que o indivíduo possa existir no mundo, se apresentar a ele e, acima de tudo, ser identificado. Por isso, sua alteração, quando desejada, é de suma importância para que todas as pessoas possam não apenas se tornar visíveis mas também serem reconhecidas como desejam, expressando o mais íntimo de seus seres. Não à toa, o direito ao nome está intimamente ligado aos direitos da personalidade.
Todavia, em que pese os avanços obtidos pelos transgêneros, como relatado no início, estes só alcançam aqueles que permeiam a binariedade. Por ausência de previsão específica no Provimento 73 e na ADI 4275, apenas os binários obtém sucesso ao solicitar a mudança de forma extrajudicial. Apesar dos agêneros terem a possibilidade de recorrer ao Judiciário, via mais burocrática, isso os coloca em desvantagem quanto aos demais indivíduos pertencentes à mesma comunidade.
Para os não binárie, o caminho ainda é tortuoso, árduo e às vezes custoso. Além da marginalização que sofrem em sociedade por serem quem são, se veem traídos pelo direito e descobertos pelo Princípio Constitucional da Igualdade, que rege, ou que deveria reger, todas as relações jurídicas e sociais.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 30 out. 1975. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6015compilada.htm. Acesso em: 25 nov. 2021.
__________. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275. Relator: Ministro Marco Aurélio. Brasília, 1 mar. 2018. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339649246&ext=.pdf . Acesso em: 23 nov. 2021.
L'ORÉAL GROUPE. Pansexual, Queer, Intersexual… entenda o significado das siglas e termos do glossário LGBTQIA+. L'Oréal Brazil. Disponível em: https://www.loreal.com/pt-br/brazil/news/grupo/pansexual-queer-intersexual-entenda-o-significado-das-siglas-e-termos-do-glossario-lgbtqia-grupo-lor/. Acesso em: 24 nov. 2021.
RIBEIRO, Laila Gianini. A Retificação de Registro Civil dos Não Binários pela via Extrajudicial. 2021. 15 f. (Pós-Graduação em Direito Notarial e Registral) – Universidade Cândido Mendes, 2021.
RIELLO, Claudia. Conheça o significado da sigla LGBTQIA+. Diário do Nordeste. [S.l.], 28 jun. 2021. Disponível em: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/estilo-de-vida/sisi/conheca-o-significado-da-sigla-lgbtqia-1.3103180. Acesso em: 24 nov. 2021.
RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Programa Justiça Itinerante do TJRJ promove ação inédita e realiza 96 requalificações civis de não-binários e transexuais. Rio de Janeiro, 26 novo. 2021. Disponível em: http://www.tjrj.jus.br/web/guest/noticias/noticia/-/visualizar-conteudo/5111210/41144039. Acesso em: 29 nov. 2021.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. LGBTQIAP+: Você sabe o que essa sigla significa? Porto Alegre, 20 jul. 2021. Disponível em: https://www.trt4.jus.br/portais/trt4/modulos/noticias/465934. Acesso em: 24 nov. 2021.
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